Sunday, August 01, 2004

O mendigo

Era ainda noite, quando cheguei ao Terreiro do Paço. Estava muito frio. Não havia carros a circular na estrada. Passei para o outro lado do passeio sem ameaça de ruído automóvel. Lisboa, estava só e cansada, vestida de negro. Um homem cruzou-se comigo, dizendo palavras embriagadas entre dentes, que nem percebi. Olhei para o meu lado direito e vi um mendigo envolvido em folhas de jornal. Cheguei ao pé dele e parei que nem uma estátua. Tinha vontade de o ajudar, de o ouvir e, ao mesmo tempo, estava receoso. De repente, o seu braço deslocou-se para puxar uma folha de jornal que teimosamente o queria destapar. Entretanto amanheceu. Os seus olhos abriram-se lentamente e o pobre homem, afastou as folhas de jornal, levantou-se e caminhou comigo. Sem lhe fazer nenhuma pergunta, murmurou, Chamo-me Mário, tive o mundo a meus pés. Fiquei interrogado. Olhei para ele fixamente, tentando adivinhar naquele rosto um ídolo, uma figura do passado. Em passos lentos e cabisbaixo, disse-me, Você se calhar até me conhece, com os meus golos consegui levantar estádios e encher muitas folhas de jornal como estas. Aquele homem de rosto sofrido estava ferido de sentimentos. Por momentos, não consegui abrir a boca. E eu que quando jogava à bola na rua com os meus amigos tentava sempre imitá-lo. Comprava todas as revistas em que ele vinha. Recortava todas as fotografias dos jornais, quando a objectiva conseguia captar os seus pontapés acrobáticos. Entrámos num café. Um empregado dirigiu-se a nós, perguntou o que queríamos e afastou-se suavemente com ar desconfiado. Se não fosse a minha presença, aquele homem de calças rasgadas, camisa esburacada e cabelo esgadelhado, seria vexado naquele local. Como adivinhando o meu pensamento, Mário, olhou para mim e amargurado exclamou, António, a vida às vezes é irónica, muitas vezes, já fui humilhado aqui e noutros locais, quando afinal dei tantas alegrias a estes homens que hoje praticam esse gesto contra mim. Mais uma vez, fiquei calado. Nem sequer arrisquei uma palavra. Aquele desabafo, fez-me reflectir. Notava-se em Mário que era um homem de bom coração, mas que a vida atraiçoou e da qual provinha o saber das suas palavras. As suas origens eram humildes. Nascera no interior do país, no seio de uma família de trabalhadores rurais. Ele estava destinado hereditariamente à terra. Mas o seu jeito para o futebol começou a notar-se na escola primária, quando fugia das aulas, em direcção ao largo da aldeia com uma bola de trapos debaixo do braço. Os anos passaram. O largo e o clube da terra começaram a tornar-se pequenos para a sua dimensão. Veio então para um clube grande da capital. Repetia a sua história incansavelmente, e os seus olhos continuavam a brilhar como nas tardes de Domingo com os estádios cheios a gritar golo.



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