Sunday, August 01, 2004

Precipício

Sobre ele assentavam preocupações aceleradas, umas atrás de outras. Em cada uma, puxava um cigarro, acendia-o e logo outro tirava do maço, pois o primeiro já terminara. Ao lado, uma chávena de café arrefecia lentamente. Na expressão do seu rosto encovado encostava uma mão fechada e tensa, enquanto uma borra de cigarro caía sobre a mesa. Aquela rotina repetia-a há muitos anos, desde que decidira dar continuidade a um negócio de família.
Todos os dias saía de casa cedo. Deixava a mulher e os filhos ainda a dormir. Quando voltava, pela madrugada, o mesmo cenário de silêncio permanecia pela casa, como se não tivesse havido vida para aquelas pessoas.
Os problemas acumulavam-se à medida que cresciam os papéis no cimo da secretária, e os olhos mortiços de constantes insónias não lhe permitiam o discernimento que a sua actividade exigia.
Já não conseguia falar. Só gritava. O seu pensamento recuava, frequentemente, aos anos da juventude, quando ainda estava a concluir a sua licenciatura numa universidade estrangeira, para onde os seus pais quiseram que ele fosse, prática comum nas famílias da época com mais poder económico. Lembrava-se desses anos e as lágrimas corriam precipitadas na sua face, tal a nostalgia que as memórias lhe causavam. Tinham sido os melhores anos da sua vida, sem a cegueira do dinheiro que há mais de vinte anos o destruíam como ser humano. Não suportava mais aquela situação e tomou de imediato uma decisão.
Tudo aconteceu num dia frio de Outono, em que as folhas das árvores cobriam com a sua cor castanha a estrada. E lá ao fundo, numa ravina, apareceu um corpo desfeito e um papel dobrado dentro do bolso de um casaco que ficara sobre uma rocha. Nele estava escrito: Tal como este papel a vida tem duas partes.





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