Monday, August 02, 2004

O último cair do olhar

Quando as estantes dos livros lidos começaram a ficar cheias de pó, o escritor decidiu abrir a gaveta onde guardava os poemas, as crónicas, os contos, as novelas, as reflexões, os pensamentos nunca ditos que a sua arte coleccionou durante as manhãs de inspiração, as tardes de chuva e as noites de insónias.
Ali, numa letra inclinada e miúda, encontravam-se pedaços de uma vida decorada com muitas estórias de diversas tonalidades. Estava tudo lá: a infância passada na cidade, na qual as crianças ainda tinham espaço para brincar junto aos prédios, a adolescência entre a descoberta da mudança natural do corpo e as primeiras desilusões amorosas, a primeira fase adulta de aventura pelas universidades do estrangeiro e o regressar à terra-mãe na esperança de encontrar um país de espírito progressista na construção humana diária do futuro presente.
A escrita já era para o artista um arrastar da mão pelas memórias. Sem sonhos, sem nada de novo para lançar à praça da agitação. Limitava-se ao ritual de acordar, sentar-se na cadeira em frente ao espelho da cómoda e rir ironicamente do seu rosto envelhecido pelo cansaço da frustração que os últimos dias da sua vida lhe destinaram viver.
Era hora de um último olhar. Era hora de uma última palavra para ninguém escutar:
- Não digo mais nada!
Aquele homem, adormecera. Para sempre.
A gaveta ficou aberta à espera de alguém escrever mais um poema, uma crónica, um conto, uma novela, uma reflexão, um pensamento para dentro de si e fechá-la.

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